quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Judiciário é o caminho para conflitos que envolvem famílias de casais homossexuais

No centro do debate sobre os direitos para a união homossexual  está a advogada e desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, maior especialista no Brasil em direito homoafetivo, expressão criada por ela. A advogada é uma das responsáveis por mudar a jurisprudência no país e garantir que pessoas do mesmo sexo tenham a união reconhecida e possam adotar crianças. Para ela, o caminho para a igualdade está no Judiciário. “Se o caminho legislativo está fechado, porque o legislador tem preconceito e fundamentalismo religioso, o Judiciário é o caminho”, afirma. A ex-desembargadora pesquisou e reuniu em um site mais de 900 decisões favoráveis à causa.

Maria Berenice nasceu em uma família de magistrados. Com pai e avô desembargadores, foi criada em um ambiente sempre atento a questões jurídicas. “Meu pai era uma idealista e meu sonho era ser como ele”, conta. Teve de enfrentar uma batalha burocrática e de preconceito para conseguir homologar sua inscrição para ingressar na magistratura. “Foi algo que me doeu muito, porque era discriminada pela condição de mulher. Já era formada em Direito, trabalhava, era professora universitária e tive de travar uma guerra”, lembra. Diante desse processo, Maria Berenice também foi pioneira ao garantir mais direitos às mulheres: tornou-se a primeira juíza do Rio Grande do Sul e ajudou a elaborar a Lei Maria da Penha. Ela falou com a Gazeta do Povo, na semana passada, por telefone. Confira os principais trechos da entrevista:

No próximo mês o Supremo Tribunal Federal (STF) vai decidir se as uniões homossexuais têm validade jurídica. Qual a expectativa?

Não são todos os tribunais do país que reconhecem famílias homoafetivas, ainda que a tendência seja o oposto. Pelo que vários ministros já têm sinalizado, acredito que a decisão será positiva. Gilmar Mendes, quando estava no Tribunal Superior Eleitoral [TSE], já reconheceu que há uma união. Outros ministros, em algumas decisões e despachos, já sinalizaram neste sentido. O relator, Ayres Britto, já demonstrou, mais de uma vez, de maneira pública, que seria esta a orientação. Depois da decisão, há mais facilidade. Se o caminho legislativo está fechado, porque o legislador tem preconceito e fundamentalismo religioso, o Judiciário é o caminho. O STF servirá de norte.

Muitos questionam porque uma mulher heterossexual, com filhos, começou a lutar por essas causas. Dizem que a senhora responde que é “homossexual, vítima de violência doméstica, negra, abusada sexualmente.” É verdade?

Sim, é verdade. Quando as pessoas questionam isso, estão mostrando o limite da pequenez. Acham que cada um só pode defender seus próprios interesses, que só se pode advogar por causa própria. Parece que ninguém tem gestos de solidariedade, que o branco não pode advogar pela causa do negro. Quando comecei a lutar para combater o abuso sexual, a dizer que isso ocorria nas famílias, que o incesto ainda era recorrente, a primeira pergunta que me faziam é se tinha sido abusada sexualmente.

A Justiça ainda tem dificuldade em conceder a adoção para casais homossexuais. Por quê?

Depois da decisão do Superior Tribunal de Justiça, que em abril do ano passado concedeu o direito de adoção a um casal homossexual, a situação mudou muito. A habilitação conjunta já está consolidada e a guarda também. Sobre a fertilização, eu levantei um questionamento que é válido tanto para casais homossexuais como heterossexuais. Há muitas formas de reprodução assistida, há uma indústria. Como o processo de adoção é penoso, as pessoas ficam anos na fila e desistem. Precisamos repensar e agilizar este processo, senão, ao invés de procurarem a adoção, os casais tentarão ter filhos biológicos.

Como começou a atuação com homossexuais?

Me dei conta de que as mulheres eram discriminadas e perdiam direitos pela simples condição de mulher. Quando se afastavam do modelo casto, eram excluídas. Acabei me interessando pelo Direito de Família. Comecei a trabalhar com famílias extramatrimoniais e concubinatos. A Justiça não reconhece a família fora do casamento e isso sempre foi muito prejudicial às mulheres. Me causou extrema surpresa ver que famílias formadas por pessoas do mesmo sexo eram destinadas às varas cíveis, porque eram vistas como uma sociedade onde duas pessoas se juntam para obter lucro. Este é um fator de exclusão, que elimina todos os direitos. Os homossexuais precisavam vir para as varas de família. Escrevi então o primeiro livro brasileiro que abordou a questão. Era preciso mudar a jurisprudência para que as ações fossem para as varas de família. O juiz de família é mais sensível, percebe mais facilmente que a família homoafetiva merece a mesma proteção que a família heterossexual.

A senhora criou a expressão direito homoafetivo. Por quê?

Estou feliz porque três dicionários já incorporaram esta expressão. Ao mudar a palavra, pensei que poderia mudar o sentido e eliminar a discriminação no conceito. A palavra homossexual acaba se tornando pesada porque se atenta à questão do sexo. Parece que é somente isso que se enxerga quando se olha para um homossexual. Imagina-se a pessoa na cama com alguém do mesmo sexo e há a repulsa. A intenção é desfocar do sexo. O vínculo de família não é de natureza sexual, mas de natureza afetiva, assim como os heterossexuais. O afeto parece piegas, não era levado muito a sério. Acabava sendo uma expressão marginalizada. Além disso, trabalho com os direitos das famílias, no plural, e não no singular, porque o que distingue é o vínculo afetivo. Essa definição já está presente na Lei Maria da Penha.

Já há uma boa jurisprudência no direito homoafetivo?

Na defesa da causa dos homossexuais, o que me surpreendeu na atividade profissional foi o número pequeno de reivindicações. Havia poucas ações porque poucos advogados aceitavam clientes homossexuais. As pessoas não sabem em que porta bater. Essa foi uma das razões que motivaram minha aposentadoria antecipada. Ainda poderia ficar mais dez anos na magistratura, mas decidi advogar. Criei o primeiro escritório no Brasil especializado em direito homoafetivo. Há um site onde reúno todas as decisões favoráveis à causa. Temos 900 já. Agora estou batalhando para que a Ordem dos Advogados do Brasil [OAB] crie comissões da diversidade, para que os profissionais trabalharem nesta área.

O conceito de família está mudando hoje, mas algumas pessoas ainda acreditam que deve se restringir a um homem e uma mulher. O que a senhora acha disso?


A Constituição Federal não diz isso, prevendo que um dos pais com seus filhos é família. A família não tem conotação de ordem sexual. A ideia de homem e mulher é religiosa, ressalta a procriação. Mas a capacidade de ter filhos não é o que define a família. Uma mulher na menopausa não pode mais formar família por não poder se reproduzir? Casamento não é sexo e procriação. Há sexo sem casamento e sexo sem procriação.

Como surgiu esta consciência de que era preciso lutar por algumas causas?

Sempre aceitei desafios. Não consigo conviver com o “não pode porque não pode”. Questiono o que está posto. Isso é algo que sempre levei ao longo da vida. Me questiono se a lei prevê algo, me questiono se é justo que as pessoas não tenham direito. Em toda a minha trajetória fui abraçando outras causas. Primeiro a das mulheres – participando do movimento feminista e lutando por mudanças legislativas – depois pelos homossexuais, negros, soropositivos, etc. Luto por todos a quem a sociedade não costuma dar voz nem vez.

Serviço:

As jurisprudências ligadas a relacionamentos homoafetivos podem ser consultadas no site www.direitohomoafetivo.com.br.

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